domingo, 29 de janeiro de 2017

Carlos Drummond de Andrade

Cantinho dos marafados

Ao ler o Correio do Brasil e a descrição de uma das regiões mais importantes daquele país, essencialmente sobre a paisagem, economia e explosão demográfica do sul de Minas Gerais, região que bem conheço, senti uma vontade irresistível de escrever sobre as pessoas.
Entre as inúmeras personalidades nascidas em Minas Gerais, escolhi falar um pouco daquele que considero um dos três poetas maiores da língua portuguesa, Carlos Drummond de Andrade.
Sou um incondicional admirador da sua obra, com a qual me identifico totalmente, entendo que de nada vale acharmos que em verso ou em prosa, algo é muito bonito, que está muito bem escrito, se não nos identificarmos com o seu conteúdo, se não interiorizarmos o que nos é transmitido pelo autor.
O poeta nasceu em Itabira do Mato Dentro – Minas Gerais, em 31 de Outubro de 1902, faleceu em 17 de Agosto de 1987. Filho de uma família de fazendeiros decadentes, estudou na cidade de Belo Horizonte e posteriormente no Colégio Anchieta em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, tendo sido expulso por “insubordinação mental” (nunca ficou esclarecido o que seria insubordinação mental) começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.
Há anos atrás tive oportunidade de assistir a uma tarde de poesia em que o principal declamador era o grande actor que foi, Mário Viegas. No final confrontei-o com o facto de no espectáculo que apresentava, existirem obras de, para além de poetas portugueses, também dos consagrados brasileiros, Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, mas nada de Carlos D. de Andrade.
Senti algum desconforto na resposta que foi inconclusiva, mas também senti que a discriminação não era o motivo que conduzia a tal ausência, o que me deixou mais tranquilo.
Fui encontrar a resposta algum tempo depois na sua última entrevista, concedida a Geneton Moraes Neto (Dossiê Drummond, ed. Globo, 1994). Dizia então:
“Nenhum poema meu ficou popular. A verdade é essa. Considero popular nas gerações antigas, o “ouvir estrelas”, de Olavo Bilac; o “mal secreto” de Raimundo Correia; “meus oito anos” de Casimiro de Abreu; “ A canção do exílio” de Gonçalves Dias. São dois ou três, nenhum outro fica. Geralmente são poemas pequenos que a memória guarda com mais facilidade. De mim ficaram versos. “ E agora José?” não é verso; é uma frase. “Tinha uma pedra no meu caminho” – e só, não creio que tenha ficado nada mais. Nada houve meu propriamente popular. Em geral as pessoas guardam a imagem do poeta, mas não guardam o verso, até porque a maior parte dos poemas são em verso livre, não são metrificados nem rimados, então é mais difícil guardar.”
Para aqueles que eventualmente  não conheçam ou os que queiram recordar aí vai o emblemático :

E agora, José?

E agora, José?
a festa acabou,
a luz acabou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos.
Que ama, protesta?
E agora, José

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu,
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce  palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?

Se você gritasse,
se  você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
Você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José,  para onde ?


Escrito durante a Segunda Guerra Mundial, e na ditadura de Getúlio Vargas, “José”, apesar da dureza, ainda tem o impulso de continuar seguindo. Mesmo sem saber para onde.
Em mais um golpe de asa, José Saramago aproveita o embalo e escreve uma crónica com o mesmo nome, incluída no livro “A bagagem do viajante” . Não vou comentar, só destaco que teve, valha-nos isso, o pudor de referir o nome de Carlos Drummond de Andrade e criar o personagem José Júnior, na aldeia de São Jorge da Beira, localidade também fruto da sua imaginação; Foi bem conseguido e só isso.

Vou concluir por agora, transcrevendo mais um poema do mestre:

Mãos Dadas

Não serei um poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos  muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas, nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
A vida presente.

Carlos Drummond de Andrade.

Voltarei oportunamente ao tema, se o moderador achar que vale a publicação e se vocês que tiverem a paciência de me ler,  não  vaiarem.
Um sorriso e um abraço, para finalizar.

António Viegas Palmeiro

Cantinho dos Marafados

CANTINHO DOS MARAFADOS
(HOJE NO ALENTEJO)



Este episódio chegou ao meu conhecimento relatado pelo meu amigo Carlos Sousa, dono da herdade das Cumeadas, ali para os lados do Vale de Santiago.
Quero começar por identificar melhor o amigo Carlos. É um homem mais velho do que eu, tipo do  lavrador  alentejano  de  antigamente,  sério,  honesto e respeitado.
Durante muitos anos fui responsável pela  contabilidade  da  herdade e sempre que necessário ia até lá.  Para  além  da  parte  profissional,  era  para  mim um grande prazer conversar com este homem,  digo era,  não  porque  ele  tenha passado para outra dimensão,  mas porque quem está agora à frente da exploração é o genro, os anos não perdoam.
Sempre havia água fresca da fonte,  em várias  quartas (a) de barro,  em fila  numa bancada própria e em vez do copo de  vidro, um  cucharro (b)  de  cortiça,  a  água tem logo outro beber. Se acrescentarmos a simpatia da dona Maria, criada da casa desde os onze anos,  já lá  vão  mais  de cinquenta, está preparado o ambiente para  uma tarde daquelas em que nem damos pelo tempo passar.
Quando  aqui   uso  o   termo   “criada da casa”   mais  não  estou  fazendo  do  que utilizando a forma como a dona Maria gosta de ser tratada. Ai de quem se atreva a chamar-lhe empregada doméstica,  a gata e a cadela é  que  são  domésticas, eu sou criada da casa e criada na casa. Ela  comanda  os  destinos  do monte como se tudo fosse seu.  Nem  sonha  a categoria  que consta  na folha de salários, até eu corria o risco de ouvir das boas.  Apesar  de  avisada  de que  um  dia  podem  aparecer  os sindicalistas ou organizações que achem que é humilhante o tratamento de criada, ela  responde  de  imediato: - Aqui  sem  minha  autorização  ninguém  entra  e  se alguém tentar jogar-me  contra  os  patrões  e  os  meninos  vai-lhe  acontecer uma desgraça. Nem no tempo das ocupações de terras o conseguiram.
Tudo isto para concluir que de seguida a dona Maria ia pôr a mesa sempre farta e que se alguém recusasse provar algo que ela aconselhasse seria logo convidado a ir dar uma volta ao alpendre porque não estava a   fazer nada ali sentado na mesa. O menu  era   sempre  de  lamber  os  “beços”,  nunca  faltava  o  presunto curado na chaminé lá do monte, queijinhos de cabra e de ovelha, torresmos  feitos lá em casa, as azeitonas adoçadas num dos potes guardados no  escuro  e um naco de toucinho com uns oito centímetros de altura,  curado  e  salgado  numa  arca de madeira na cozinha e comido cru. Posso garantir-vos que não faz mal nenhum e é uma delicia.
O vinho  feito  também  na  adega  do  monte  era  qualquer  coisa de divinal e que ninguém  ousasse  perguntar  a  graduação.  Para  quê  saber   um  pormenor  sem interesse perante um néctar dos deuses.  O pão amassado  pela dona Maria era de comer e chorar por mais.
Entusiasmei-me  falando  da  dona  Maria,  e quase  esqueci  o  objectivo principal desta crónica. Já agora e para completar este capítulo dizer que o marido da dona Maria  é  o  “Manel  das  ovelhas”, Manuel  Francisco,  um  seu  criado,  como  ele próprio se apresenta, é ele o “moiral” das cerca de quinhentas ovelhas da herdade e aqui começa então a descrição que me foi feita pelo meu amigo Carlos:
- Estava o Manel com as ovelhas do outro lado da ribeira, a pastagem era farta e o gado já estava mais para o descanso, bem guardado pelos dois rafeiros alentejanos,
aproveitando a  sombra  do  sobreiro porque  o  sol  já  começava  a “acalar” forte.
O equipamento era sempre o mesmo, uma balsa (c) com  uma  bucha  de  pão,  um naco de toucinho  ou  de  linguiça,  uma  pinga  de  vinho. Em  dias com as manhãs mais frias levava os safões (d)  a pelica (e),o cajado e a espingarda, podia aparecer uma perdiz ou quem sabe uma lebre e a ceia estava garantida.
Naquele dia no silêncio da manhã já avançada, ouviu-se um tiro e a alguns metros do local onde se encontrava  o bom  do Manel,  caíram  mortos  dois trigueirões (f) nem se levantou do  local  onde  estava,  encostado  ao  sobreiro.   Poucos  minutos depois chegaram junto dele dois indivíduos que se identificaram como guardas da natureza e trava-se o seguinte diálogo:
- Então o senhor matou os dois trigueirões? Perguntaram!!
- Eu não matei os passarinhos!...
- Insistência de que matou.
- Reafirmação com voz calma e pausada: - Eu nã matei os passarinhos.
Estava a discussão no auge quando, chamada pelos tais “verdes” apareceu uma patrulha da GNR.
Conversam com os ditos fiscais e finalmente dirigem-se ao Ti Manel.
- Bom dia Sr. Manuel!
- Diaaaa…
- Então conte lá o que se passou!
- Nã se passou nada! Esses gajos é que apareceram aqui a dizer que eu tinha matado uns trigueirões e eu nã matei passarinhos nenhuns.
Matou, não matei, matou não matei e por aí vai.
O cabo Matias já à beira da reforma, coçava a cabeça e não sabia o que fazer.
Até que o cabo, como se tivesse encontrado a chave do problema diz com alguma euforia:
- Ah! Mas aqui este senhor e apontava um dos “verdes”, diz que o senhor Manuel o ameaçou que lhe dava um tiro!
- Disse que lhe dava um tiro e se ele não desaparecer daqui depressa, dou-lhe mesmo!
O cabo queria resolver rapidamente o problema e cada vez a coisa se complicava
Mais.
- Mas porquê? Porquê essa ameaça tão grave?
Oh, senhor cabo, não é que esse malandro teve o descaramento de me desafiar, para   ir  com   ele  para   trás  daquela  moita  fazer  porcarias  dessas  que  os “homonãoseioquê” fazem, ele tá “pensando qa gente aqui é o quê” maricas?
Tudo piorou, os “verdes” ficaram  embaçados, o cabo já não tinha mais cabeça para coçar, o outro guarda, jovem com poucos meses de serviço, não conseguia conter o riso,  o  ti Manel,  calmo  como  sempre  continuava  na  mesma  posição, encostado ao cajado.
O cabo à beira de uma crise de nervos ainda perguntou:
- Então e o outro colega dele ouviu ele fazer-lhe essa proposta?
- Nã senhora ele disse isso,  quando  o outro  foi ao carro deles para  chamar vocês.
Porque maioral não anda com B. I. o ti Manel foi identificado por  conhecimento e que depois alguém  passaria  no  monte  para  o identificar formalmente, os verdes saíram de fininho e fiquei sem saber quem ficou com os trigueirões, porque o resto ficou por isto mesmo.
O ti Manel continua na velha calma e cumprindo a rotina de todos os dias, sem ser mais incomodado.

Para quem não conhecer os termos aí vão algumas definições.
 a) - Quarta – recipiente de barro em forma de cântaro.
 b) – Cucharro – objecto de cortiça em forma de concha usado para beber líquidos.
 c) – Balsa – Sacola feita em palhinha para transportar o farnel ao ombro, a alsa era um baraço de fio de sisal.
 d) – Safões – perneiras só da parte da frente feitas em pele de ovelha.
 e) -  Pelica – tipo de casaco sem mangas e que vai até ao meio da perna, também em pele de ovelha.
 f) – Aves que existiam por todo o Alentejo e que hoje estão em extinção, encontram-se só em determinadas regiões e estão protegidas.
 g) – Moiral – alentejanês de maioral

António Viegas Palmeiro