domingo, 29 de janeiro de 2017

Cantinho dos Marafados

CANTINHO DOS MARAFADOS
(HOJE NO ALENTEJO)



Este episódio chegou ao meu conhecimento relatado pelo meu amigo Carlos Sousa, dono da herdade das Cumeadas, ali para os lados do Vale de Santiago.
Quero começar por identificar melhor o amigo Carlos. É um homem mais velho do que eu, tipo do  lavrador  alentejano  de  antigamente,  sério,  honesto e respeitado.
Durante muitos anos fui responsável pela  contabilidade  da  herdade e sempre que necessário ia até lá.  Para  além  da  parte  profissional,  era  para  mim um grande prazer conversar com este homem,  digo era,  não  porque  ele  tenha passado para outra dimensão,  mas porque quem está agora à frente da exploração é o genro, os anos não perdoam.
Sempre havia água fresca da fonte,  em várias  quartas (a) de barro,  em fila  numa bancada própria e em vez do copo de  vidro, um  cucharro (b)  de  cortiça,  a  água tem logo outro beber. Se acrescentarmos a simpatia da dona Maria, criada da casa desde os onze anos,  já lá  vão  mais  de cinquenta, está preparado o ambiente para  uma tarde daquelas em que nem damos pelo tempo passar.
Quando  aqui   uso  o   termo   “criada da casa”   mais  não  estou  fazendo  do  que utilizando a forma como a dona Maria gosta de ser tratada. Ai de quem se atreva a chamar-lhe empregada doméstica,  a gata e a cadela é  que  são  domésticas, eu sou criada da casa e criada na casa. Ela  comanda  os  destinos  do monte como se tudo fosse seu.  Nem  sonha  a categoria  que consta  na folha de salários, até eu corria o risco de ouvir das boas.  Apesar  de  avisada  de que  um  dia  podem  aparecer  os sindicalistas ou organizações que achem que é humilhante o tratamento de criada, ela  responde  de  imediato: - Aqui  sem  minha  autorização  ninguém  entra  e  se alguém tentar jogar-me  contra  os  patrões  e  os  meninos  vai-lhe  acontecer uma desgraça. Nem no tempo das ocupações de terras o conseguiram.
Tudo isto para concluir que de seguida a dona Maria ia pôr a mesa sempre farta e que se alguém recusasse provar algo que ela aconselhasse seria logo convidado a ir dar uma volta ao alpendre porque não estava a   fazer nada ali sentado na mesa. O menu  era   sempre  de  lamber  os  “beços”,  nunca  faltava  o  presunto curado na chaminé lá do monte, queijinhos de cabra e de ovelha, torresmos  feitos lá em casa, as azeitonas adoçadas num dos potes guardados no  escuro  e um naco de toucinho com uns oito centímetros de altura,  curado  e  salgado  numa  arca de madeira na cozinha e comido cru. Posso garantir-vos que não faz mal nenhum e é uma delicia.
O vinho  feito  também  na  adega  do  monte  era  qualquer  coisa de divinal e que ninguém  ousasse  perguntar  a  graduação.  Para  quê  saber   um  pormenor  sem interesse perante um néctar dos deuses.  O pão amassado  pela dona Maria era de comer e chorar por mais.
Entusiasmei-me  falando  da  dona  Maria,  e quase  esqueci  o  objectivo principal desta crónica. Já agora e para completar este capítulo dizer que o marido da dona Maria  é  o  “Manel  das  ovelhas”, Manuel  Francisco,  um  seu  criado,  como  ele próprio se apresenta, é ele o “moiral” das cerca de quinhentas ovelhas da herdade e aqui começa então a descrição que me foi feita pelo meu amigo Carlos:
- Estava o Manel com as ovelhas do outro lado da ribeira, a pastagem era farta e o gado já estava mais para o descanso, bem guardado pelos dois rafeiros alentejanos,
aproveitando a  sombra  do  sobreiro porque  o  sol  já  começava  a “acalar” forte.
O equipamento era sempre o mesmo, uma balsa (c) com  uma  bucha  de  pão,  um naco de toucinho  ou  de  linguiça,  uma  pinga  de  vinho. Em  dias com as manhãs mais frias levava os safões (d)  a pelica (e),o cajado e a espingarda, podia aparecer uma perdiz ou quem sabe uma lebre e a ceia estava garantida.
Naquele dia no silêncio da manhã já avançada, ouviu-se um tiro e a alguns metros do local onde se encontrava  o bom  do Manel,  caíram  mortos  dois trigueirões (f) nem se levantou do  local  onde  estava,  encostado  ao  sobreiro.   Poucos  minutos depois chegaram junto dele dois indivíduos que se identificaram como guardas da natureza e trava-se o seguinte diálogo:
- Então o senhor matou os dois trigueirões? Perguntaram!!
- Eu não matei os passarinhos!...
- Insistência de que matou.
- Reafirmação com voz calma e pausada: - Eu nã matei os passarinhos.
Estava a discussão no auge quando, chamada pelos tais “verdes” apareceu uma patrulha da GNR.
Conversam com os ditos fiscais e finalmente dirigem-se ao Ti Manel.
- Bom dia Sr. Manuel!
- Diaaaa…
- Então conte lá o que se passou!
- Nã se passou nada! Esses gajos é que apareceram aqui a dizer que eu tinha matado uns trigueirões e eu nã matei passarinhos nenhuns.
Matou, não matei, matou não matei e por aí vai.
O cabo Matias já à beira da reforma, coçava a cabeça e não sabia o que fazer.
Até que o cabo, como se tivesse encontrado a chave do problema diz com alguma euforia:
- Ah! Mas aqui este senhor e apontava um dos “verdes”, diz que o senhor Manuel o ameaçou que lhe dava um tiro!
- Disse que lhe dava um tiro e se ele não desaparecer daqui depressa, dou-lhe mesmo!
O cabo queria resolver rapidamente o problema e cada vez a coisa se complicava
Mais.
- Mas porquê? Porquê essa ameaça tão grave?
Oh, senhor cabo, não é que esse malandro teve o descaramento de me desafiar, para   ir  com   ele  para   trás  daquela  moita  fazer  porcarias  dessas  que  os “homonãoseioquê” fazem, ele tá “pensando qa gente aqui é o quê” maricas?
Tudo piorou, os “verdes” ficaram  embaçados, o cabo já não tinha mais cabeça para coçar, o outro guarda, jovem com poucos meses de serviço, não conseguia conter o riso,  o  ti Manel,  calmo  como  sempre  continuava  na  mesma  posição, encostado ao cajado.
O cabo à beira de uma crise de nervos ainda perguntou:
- Então e o outro colega dele ouviu ele fazer-lhe essa proposta?
- Nã senhora ele disse isso,  quando  o outro  foi ao carro deles para  chamar vocês.
Porque maioral não anda com B. I. o ti Manel foi identificado por  conhecimento e que depois alguém  passaria  no  monte  para  o identificar formalmente, os verdes saíram de fininho e fiquei sem saber quem ficou com os trigueirões, porque o resto ficou por isto mesmo.
O ti Manel continua na velha calma e cumprindo a rotina de todos os dias, sem ser mais incomodado.

Para quem não conhecer os termos aí vão algumas definições.
 a) - Quarta – recipiente de barro em forma de cântaro.
 b) – Cucharro – objecto de cortiça em forma de concha usado para beber líquidos.
 c) – Balsa – Sacola feita em palhinha para transportar o farnel ao ombro, a alsa era um baraço de fio de sisal.
 d) – Safões – perneiras só da parte da frente feitas em pele de ovelha.
 e) -  Pelica – tipo de casaco sem mangas e que vai até ao meio da perna, também em pele de ovelha.
 f) – Aves que existiam por todo o Alentejo e que hoje estão em extinção, encontram-se só em determinadas regiões e estão protegidas.
 g) – Moiral – alentejanês de maioral

António Viegas Palmeiro

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